*Este artigo contém spoilers*
Recentemente assisti ao filme
Manchester à Beira-Mar. O filme me surpreendeu, pelo que eu tinha visto de seu
trailer e ouvido falar dele, achei que seria um filme dramático com roteiro repetitivo. Mas foi algo
realmente original. E é claro que muitas emoções tomaram parte, pois o enredo toca em
vulneráveis partes do horizonte da experiência humana.
Manchester à Beira-mar, psicologia e experiência humana
O que mais gostei é que o filme incita a reflexão sobre mais de uma dessas experiências às quais somos vulneráveis. Para começar, existe a reflexão sobre a perda e a finitude da vida. Agregado a isso, temos a reflexão sobre a vida após esta perda, e como carregaremos esse peso. E ainda há a reflexão sobre seguir em frente — que é sempre mais difícil do que supomos.
Estas experiências convergem-se na
vida de Lee, o personagem principal. É interessante como o filme apresenta para o expectador os
flashbacks, trazendo uma enorme verossimilhança. De início, é uma tendência nossa
pensar que não faz sentido algum Lee querer permanecer com sua "quase miserável
vida", onde mora em um cômodo pequeno, não tem amigos, não gosta de seu trabalho, e
parece um zumbi. Porque, paralelamente, ele tem a chance de uma vida nova com seu
sobrinho Patrick, e os flashbacks mostram que os dois cultivaram uma bela e amável relação desde sempre. Mas à medida que os flashbacks vão acontecendo, entendemos e ficamos
empáticos com a resistência de Lee em voltar a morar na cidade de
Manchester.
Mas qual é a semelhança com o mundo
real que o filme retrata brilhantemente? É que o filme expõe a tendência que
temos no mundo contemporâneo em julgar, e não nos abrimos para a experiência do
outro. Pois é só com esta abertura que conseguiremos compreender a experiência
do outro e ver que quanto mais nos abrimos, menor é a nossa tendência em
julgar.
Quando Lee recebe a notícia de que
seu falecido irmão, Kyle, o elegeu para ser o tutor de Patrick,
ele insistentemente se nega a assumir a responsabilidade. Isso mostra como o passado
ainda se faz presente para Lee: apesar da nova chance, aparentemente ele
está estagnado pela experiência traumática de perder as filhas, e se nega a ter que viver
na cidade onde isso aconteceu. Logo em seguida, ele diz para o sobrinho que eles irão viver em Quincy,
e Patrick não entende porque o tio quer voltar para sua vida miserável, sendo
que poderia ser muito mais feliz ali em Manchester. Ora, mas isso é a
perspectiva de Patrick, pois na verdade Lee não via possibilidade de ser feliz em um lugar
que lhe trouxe (e ainda traz) tanto sofrimento.
Mas ainda assim, a minha leitura é
que Kyle tentou dar uma oportunidade para o irmão com seu testamento. Uma
chance para Lee tentar “superar” o trauma, e voltar a Manchester. Coloco
superar entre aspas, pois não é possível superar e esquecer experiências
traumáticas, elas sempre nos acompanharão, o máximo que podemos fazer é
elaborá-las, ressignificá-las, de modo que a nossa relação com esta experiência
passada (que está presente e sempre estará), mude para algo que dói menos, ou
que dói de uma maneira menos sofrida.
O que importa é que Lee não via desta forma. Durante todo o filme ele não falou nenhuma vez sobre a
morte das filhas. Mas a apresentação dos flashbacks na dada ordem do filme nos instiga a pensar que Lee se sente culpado pelo ocorrido.
E também, podemos falar sobre a
relação de Lee com sua ex-mulher. Ainda existe amor (ela mesmo revela a ele que o amava quase no
final do filme), mas vamos imaginar o turbilhão de emoções pelo qual
os dois passaram. Ela o culpou pela morte das filhas, mas parece que avançou
mais do que ele na elaboração desta experiência. Disse que estava de coração partido com o que
aconteceu, no entanto, agora percebe que ainda o ama e que sabe que para os dois foi insuportável ter vivido isso.
Em contrapartida, Lee não conversa
sobre a perda das filhas com ninguém, nem mesmo quando Patrick fala com ele
sobre isso (após ver a foto das primas no quarto de Lee). Não me surpreende que Lee
ainda esteja tão marcado pelo passado, pois decide não "transformar" sua
lembrança, e isso só será possível quando decidir conversar sobre. Me
surpreende também como ele não adoeceu fisicamente, pois no mundo real provavelmente ele
teria somatizado, ou ainda isso irá ocorrer se
permanecer isolando-se.
De fato, não podemos condenar Lee por
não querer falar sobre, somente ele sabe a dor que vive, assim como cada
um de nós sabe quais as nossas. Como diz o poeta Caetano Veloso:
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.”
Reflexões para a vida
A associação com a realidade do filme chega a ser assustadora. Quantos de nós não carregamos experiências dolorosas que tentamos esconder de todos? Na verdade, esconder é impossível, pois o passado existe no presente. E experiências traumáticas ou insuportáveis nos afetam profundamente. Assim como acontece com Lee.
Assim como denominamos na Gestalt-terapia,
o passado é presentificado. Só existe o presente, mas o passado existe no
agora. Ele pode até mesmo influenciar na nossa capacidade de amar. Veja o exemplo
de Lee e sua ex-mulher, que se distanciaram sendo incapazes de compreender e expressar o amor que ainda sentiam.
Concluo que o filme Manchester à Beira-mar
impõe ricas reflexões sobre como o passado pode nos afetar e como a nossa
existência é uma soma de experiências, pois é impossível excluí-las ou
fragmentá-las. Como é o caso das experiências traumáticas: é impossível
simplesmente tentar ignorá-las e excluir nossas emoções da realidade. Aceitá-las como parte
de nossa existência é fundamental para somar outras experiências positivas. E para isso é
necessário também ressignificá-las!
E você, o que achou do filme? Também
percebeu frutíferas reflexões?
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